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TRANSFORMAÇÃO| 14.09.2022

Em direção a carros muito seguros: porém mais caros?

JESUS MONCLUS

Jesús Monclús

Diretor de Prevenção e Segurança Viária (Fundación MAPFRE)

Li há pouco tempo uma matéria que mencionava que os veículos elétricos, juntamente com as difíceis condições do contexto, estavam relegando os veículos utilitários e econômicos para fora do mercado.

Quase sem perceber (ou sim, se você estiver procurando um carro novo neste momento), estamos entrando em uma fase em que pode parecer normal que versões básicas de muitos modelos elétricos de gama média tenham um preço inicial de 30.000 euros e que alguns dos veículos exibidos nos anúncios custem facilmente 80.000 euros, um preço que é quase mais apropriado para uma residência modesta. Outra notícia mais recente apontava que um fabricante premium de veículos abandonaria sua linha atual de automóveis de menor preço para se concentrar em modelos de maior qualidade, custo, e… prestações. Isto significará, no caso desta marca, o abandono do que há uma década era o “passo” de entrada, com veículos em torno de 30.000 euros (um valor que parece ser substituído por um preço mínimo de 40 ou mesmo 50.000 euros).

Esta transformação não pode ser atribuída apenas aos interesses legítimos dos fabricantes (as marcas), porque eles estão respondendo às exigências cada vez maiores de segurança e meio ambiente impostas pela Comissão Europeia e, em última instância, por nossa sociedade, pelo meio ambiente e pelo nosso planeta. É evidente que em nossas vidas, e não apenas na mobilidade, atingimos um ponto em que os “limites do crescimento” propostos pelo Clube de Roma, há somente meio século, parecem estar na volta da esquina. Por outro lado, as políticas públicas atuais que visam restringir o uso dos automóveis, igualmente necessárias para reduzir os engarrafamentos e as emissões, entre outros motivos, também desempenham nesta transformação um papel central e inquestionável. Se não será mais possível vender um grande número de veículos econômicos com margens de lucro apertadas (economia de escala), então é natural que as marcas optem por abandoná-los para se concentrarem nos poucos (ou menos) veículos de maior preço que podem continuar sendo vendidos.

Um cenário hipotético nesta mudança estrutural pode ser o atendimento aos segmentos básicos do mercado com veículos procedentes de outras regiões geográficas com menores custos de produção (embora a diferença de custos com a Europa esteja diminuindo a passos gigantescos, devido aos custos de transporte ou à melhoria da qualidade de vida nesses países fora da Europa, por exemplo), com o consequente impacto adicional no que ainda é agora um importante setor de produção automotiva europeu. E tudo isto deve ser entendido no contexto da nova mobilidade compartilhada: a substituição da posse particular do veículo por alternativas compartilhadas, menos jovens obtendo carteiras de motorista, maior uso -felizmente- de formas sustentáveis, como os deslocamentos a pé ou de bicicleta, o surgimento de novas formas de mobilidade, como os patinetes elétricos ou os veículos leves elétricos que em breve poderão ser conduzidos, como já acontece na França, com a nova futura carteira de habilitação B1, etc.

Se isto for verdade, terá implicações extremamente importantes para a sociedade e para a segurança viária. Para a sociedade, porque será difícil para as economias mais modestas pagar esses novos veículos a preços altos e, de fato, já estamos lendo diariamente notícias neste sentido, que confirmam o incremento da compra e venda de veículos usados (em parte como consequência dos problemas de desabastecimento de peças e dos prazos de entrega de veículos novos e em parte devido aos aumentos em alguns preços). O risco é que tenha lugar uma polarização entre, por um lado, rendas médias e baixas com, digamos, veículos “com experiência na estrada” e, por outro lado, com rendas altas, com recentes veículos “etiqueta zero” equipados com todos os últimos sistemas de segurança viária. Ou que certos tipos de mobilidade obrigatória para chegar ao trabalho não possam ser cobertos, ou compassados, pelas melhorias necessárias do transporte público e por novas ou melhores infraestruturas seguras para deslocamentos a pé e de bicicleta: estou pensando aqui em tantos trabalhadores de pequenas e médias empresas de áreas industriais, fora dos grandes núcleos de população, no ambiente rural…

Para finalizar, o mencionado acima também pode ter um impacto bastante incerto na segurança viária se as coisas não forem bem implementadas do ponto de vista da acessibilidade, da inclusão e da igualdade social. Motoristas que “esticam” a vida útil de seus velhos automóveis, com o risco de sofrerem ferimentos graves, ou letais em caso de sinistros, é cerca do dobro que em veículos relativamente novos. Trabalhadores de áreas ou zonas de estufas que, ainda sem faixas específicas para bicicletas suficientemente seguras ou sem alternativas de transporte público, pedalam até seus postos de trabalho em condições duvidosas de segurança viária…

Mas e se tudo finalmente “encaixar”? E se realmente as políticas de redução de uso (às vezes de abuso) do veículo particular tivessem sucesso nos próximos anos e, ao mesmo tempo, o transporte público fosse melhorado e novas infraestruturas seguras fossem criadas para formas de deslocamento mais ativas, saudáveis e sustentáveis? E se tudo isso contribuísse para racionalizar o emprego de carros particulares, limitando seu uso ao realmente necessário e àqueles deslocamentos 100% sustentáveis? E se a promessa de que os veículos elétricos, com 10 vezes menos peças do que os veículos de combustão interna tradicionais e, graças às baterias de segunda geração, alcances já comparáveis aos dos veículos de combustão interna, seriam ainda mais baratos do que os veículos de hoje se materializasse mais cedo do que o esperado? Dentro de todo este dilema, o papel das políticas públicas é fundamental e, para ter sucesso, será necessário encontrar o ponto de equilibro imprescindível entre a abordagem holística das necessidades de mobilidade dos cidadãos e os requisitos ambientais inevitáveis e urgentes.

(Escrito em julho de 2022, com 45ºC de temperatura na cidade de Cádiz, por exemplo; ou com 41ºC no Reino Unido, máximo histórico; ou com a Índia com 49ºC há poucas semanas…).