SEGUROS| 30.03.2022
Como funcionam os seguros em caso de guerra? (II) O transporte internacional
A maioria das apólices excluem de suas coberturas o risco de guerra, tal como explicamos neste artigo, no qual revemos a forma como os conflitos modernos configuraram o atual mercado segurador. No entanto, existe um setor em que o seguro está muito presente, garantindo seu funcionamento perante riscos de violência armada: o transporte internacional. Contamos a seguir como atuar em casos como a invasão da Ucrânia.
O comércio marítimo, que hoje movimenta mais de 80% do comércio mundial, foi também um dos espaços em que historicamente os seguros começaram a prosperar. Os comerciantes que embarcavam seus produtos com destino a todas as partes do mundo os protegiam com apólices que, inicialmente, não diferenciavam possíveis incidentes: era igual se o carregamento caía no mar, devido às más condições do clima, à pirataria ou aos canhões de um país inimigo, em qualquer caso, o segurado recebia sua indemnização.
Mas no início do século XIX, as guerras napoleônicas causaram tal quantidade de perdas – devido à destruição de navios, mas também pela sua captura ou confiscação- que as seguradoras começaram a repensar o modo de trabalhar com estes riscos, cobrindo-os de forma específica ou excluindo alguns casos. O setor foi crescendo e se internacionalizando e, perante a necessidade de normalização, em 1906 as grandes seguradoras britânicas – as que na altura dominavam este mercado – redigiram as cláusulas de “Guerra e greves”, que foram adotadas a nível global e que, com poucas atualizações, se mantiveram até nossos dias.
A denominada cobertura de guerra e greves inclui os danos ou perdas causados por:
- Guerra, guerra civil, rebelião, insurreição, revolução, ou luta civil derivada delas, ou atos hostis cometidos por ou contra uma potência beligerante.
- Captura, apreensão, embargo preventivo, restrição ou detenção.
- Minas, torpedos, bombas ou outras armas de guerra abandonadas (um suposto que se tornou uma necessidade após a Segunda Guerra Mundial, quando estes explosivos ainda abundavam nos mares)
- Grevistas, paralisação patronal ou pessoas que participem em distúrbios laborais, motins ou agitação civil.
- Terrorismo ou atos maliciosos cometidos com uma motivação política, ideológica ou religiosa.
A existência de zonas de risco
O ramo do seguro denominado marine “é internacional pela sua própria natureza e requer cláusulas normalizadas que possam ser entendidas e funcionar em qualquer parte do mundo”, tal como explica Javier Alonso, Head of Marine na MAPFRE RE. Ainda que possam apresentar diferentes redações, em geral as cláusulas respondem às mesmas figuras jurídicas.
A cobertura de guerra costuma estar incluída nas duas principais apólices da marine, a de navios (conhecida como seguro de cascos) e a de mercadorias. Nestes contratos são estabelecidas uma série de condições, entre elas para zonas de especial risco, cenários bélicos entre grandes potências ou excluindo o transporte terrestre de mercadorias, potencialmente mais perigoso.
Para os navios, a cobertura de guerra é mundial, exceto para as zonas instáveis ou potencialmente em conflito. Se um barco precisar viajar para tais zonas ou países, habitualmente poderá fazê-lo com pagamento prévio de um prêmio adicional que dependerá da situação no momento do deslocamento. As zonas de navegação nas quais a cobertura deve ser acordada caso a caso são estabelecidas pelo Joint War Committee (JWC), uma entidade que tem sua origem no grupo de grandes empresas de Londres que estabeleceram as bases do setor há mais de um século. Estas áreas e países (e suas águas territoriais, cerca de 22 quilômetros mar dentro) que o órgão considera de maior risco se situam, principalmente, no Médio Oriente e na África.
A lista de zonas excluídas pode ser alterada mediante um aviso prévio de pelo menos 7 dias, o que dá uma margem aos navios e lhes permite ter cobertura perante inícios de guerra inesperados, por exemplo, a invasão do Kuwait. Em meados de fevereiro, diante do aumento da tensão na Ucrânia, o JWC incluiu na lista as águas ucranianas e russas do Mar Negro e do Mar de Azov. Assim, se um navio se encontrava na Ucrânia ou navegando nas imediações, teria 7 dias para sair da zona ou mudar sua rota, estando protegido durante esse período, ou contatar sua seguradora para que prolongasse sua proteção, ainda que com um preço de acordo com o risco.
Outras exclusões: guerra entre grandes potências ou mercadorias por terra
No seguro de cascos é estabelecida outra importante exclusão: não cobre os danos após um início de guerra entre as principais potências militares do mundo: Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França. Mas isto apenas é aplicável no caso de que o conflito aconteça entre duas ou mais destas nações e não quando enfrentarem um terceiro.
Além disso, o seguro de mercadorias cobre os riscos de guerra “apenas enquanto se encontram flutuando no navio que as transporta, isto é, a cobertura cessa ao desembarcá-las. A partir da descarga, considera-se um risco político”, detalha o responsável da Marine da MAPFRE RE. Isto é assim a partir da guerra civil espanhola, quando as seguradoras multinacionais comprovaram que a destruição ou perda dos carregamentos que entravam em uma zona em conflito alcançavam níveis demasiado elevados para poder assumi-los.
Quando uma companhia é contatada para uma viagem concreta, é capaz de avaliar seu risco, incluindo a guerra. Nas apólices abertas de mercadorias, de duração anual e âmbito geográfico amplo, é habitual incluir a possibilidade de variar as zonas cobertas automaticamente mediante aviso prévio, de forma análoga ao seguro de embarcações.
Sanções e iates
Além dos danos, os seguros de guerra também cobrem a confiscação por motivos políticos por parte de uma nação estrangeira, algo que possui especial relevância em tempos de tensões geopolíticas, em que reter uma embarcação de um país inimigo é uma arma habitual. Isto pode afetar navios mercantes, mas também embarcações particulares, como os grandes iates, que já protagonizaram notícias pelas sanções internacionais contra a Rússia. Não obstante, para estes casos a própria legislação das medidas de penalização, como as impostas recentemente, evita tanto a cobertura como hipotéticos pagamentos a empresas ou cidadãos sancionados.