SAÚDE| 07.10.2021
Celso Arango: “As terapias digitais são muito úteis em todas as patologias mentais”
Na MAPFRE, comprometidos e ativos na defesa do ODS 3 (Saúde e Bem-Estar para todos), entrevistamos Celso Arango, Presidente da Sociedade Espanhola de Psiquiatria, Diretor do Instituto de Psiquiatria e Saúde Mental e Chefe do Serviço de Psiquiatria da Criança e do Adolescente do Hospital Geral Universitário Gregorio Marañón, para aprofundar na saúde mental da população juvenil. Coincidindo com o Dia Mundial de Saúde Mental, o reconhecido psiquiatra – catedrático honorário do King’s College do Reino Unido, docente e pesquisador de prestígio internacional – adverte da necessidade de investir em inovação e assegura que a pandemia incrementou em mais de 20% os casos de transtornos de ansiedade e depressão.
No momento em que estamos, há algum vento de mudança em matéria de saúde mental que convenha conhecer?
Estamos presenciando uma revolução em tudo o que é a medicina digital, com as novas intervenções terapêuticas através de realidade virtual e uma grande proliferação de apps – que devemos filtrar para saber quais são válidos e quais não. Todas as grandes companhias, como Google ou Apple, conectaram-se às Digital Therapeutics, à terapia digital para os transtornos mentais, e à Saúde Digital, que é muito mais ampla, porque a terapia é só uma parte… Houve ensaios clínicos por meios telemáticos nos quais os pacientes não vêm ao hospital e, de forma ativa e passiva, coletamos variáveis que têm que ver com seu sono, tensão arterial e sintomatologias que podem notificar mediante os aplicativos, o qual facilita uma coleta de informação muito ecológica, no lugar onde se encontrem, longe de uma sala in vitro do hospital e esta é uma informação muito importante. Quando eles vêm em meu consultório eu lhes pergunto: Como você está agora? Então os dois colocamos a informação em comum, mas também é possível que, nesse momento, talvez não lembrem – por exemplo – se tiveram uma crise de angústia ou uma alucinação ativa de mais de cinco dias…
As terapias digitais, permitem coletar um volume maior de informação e de maior qualidade?
Quando se está coletando ao vivo, que se captura tudo, isso dá muito mais informação. Sobretudo funciona a digitalização de terapias relacionadas com a realidade virtual, simulacros, posicionar-se na dessensibilização sistemática, como o medo de voar ou fobias que se podem controlar expondo ao usuário, diante de problemas de comportamento alimentar ou de distorção de sua imagem corporal, e como podem ir trabalhando sobre ela, já que mostram como se veem os pacientes e como estão realmente, ajudando a reduzir as discrepâncias entre as duas percepções.
As terapias digitais dão para muito em todas as patologias: esquizofrenia, transtornos bipolares, depressões… De fato, as agências reguladoras norte-americana e europeia já estão aprovando algumas terapias digitais, por exemplo, para o transtorno por déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) mediante videogames, permitindo uma melhoria da capacidade atencional. Mas é importante analisar bem: agora mesmo há 50.000 apps, e muito poucos demonstraram ser válidos. É importante fazer isso, como ocorre com os fármacos antes de entrar no mercado. É preciso submetê-los a ensaios clínicos completos para comprovar que funcionam e quais são seus efeitos secundários.
Que outros avanços práticos destacaria?
Por exemplo, medicamentos que o paciente toma e que, ao chegar ao estômago, mandam um sinal, de tal forma que a enfermeira ou o médico sabem que o paciente está recebendo o tratamento. Um dos problemas que temos é que muitos pacientes não tomam o medicamento e isso, se estão de acordo e dão seu consentimento, permite fazer um acompanhamento real. Além disso, estamos administrando fármacos que antes os pacientes deviam ingerir oralmente todos os dias e agora estamos sendo capazes de administrar-lhes para seis meses, como por exemplo um antipsicótico contra a esquizofrenia, que agora se pode reduzir a duas injeções por ano. A substância vai sendo liberada pouco a pouco e esse é o único tratamento farmacológico que requer, simplificando muito o processo e melhorando a vida das pessoas.
O sistema público já está se beneficiando destas inovações?
Não está à altura. É tudo muito mais lento e burocrático. Entendo que é importante que o público se submeta a uma avaliação do que é custo-eficiente, mas a Espanha não é um país que se caracterize por adotar decisões técnicas baseadas na evidência científica. O Reino Unido, no entanto, conta com um órgão de excelência científica como o MICE, que avalia qualquer tratamento novo que surge, seja digital, farmacológico ou terapêutico, e se encarrega de concluir se o sistema público deve financiá-lo em função de se economiza dinheiro ou melhora significativamente a vida das pessoas. Isso é feito de uma forma científica, independente e sem conflito de interesses. Na Espanha isto não acontece; aqui a inovação não é o prioritário. Fui muito crítico com o rascunho da Estratégia de Saúde Mental, porque praticamente carece de elementos de inovação. É preciso priorizar a inovação em atenção sanitária pública, porque realmente se demonstrou que é custo-eficiente. É uma de nossas disciplinas pendentes.
Como estamos neste momento depois do respiro estival?
Nós nos vimos arrastados para a telemedicina, mas aprendemos muito sobre quais questões podem ser melhoradas e em quais âmbitos não é ótima. A maioria das consultas de saúde mental estão se fazendo de forma telefônica e isso não deveria acontecer. Os profissionais sabemos que não é o mesmo ver uma pessoa, ainda que seja através de uma câmara, do que ouvir sua voz. Limitar-se a consultas telefônicas, em vez de a consultas telemáticas, é um indicador de baixa qualidade assistencial. Depois chega um momento na atenção primária em que é preciso decidir se é necessário voltar ao atendimento presencial: certamente, é necessário para qualquer paciente novo, que não conheçamos, ou quando haja uma suspeita de uma gravidade em seu caso ou que requeira a exploração física.
Falta essa cultura de qualidade… Às vezes fazem-se as coisas porque se detectam áreas de melhoria, mas é fundamental medir e ter indicadores para saber se uma mudança funcionou ou não. Se não, é preciso ser humildes e voltar ao anterior. Com a pandemia, não decidimos de forma voluntária. A tele psiquiatria está muito bem, porque muitos pacientes se beneficiarão de não se deslocar aos centros de saúde, mas é preciso fazer medicina de precisão. É preciso saber a quem, especificamente, não vai beneficiar.
“É preciso priorizar a inovação no atendimento público de saúde mental”
Quanto afetou a Covid-19 no âmbito psiquiátrico?
Se falamos sobre isso, é porque nos afetou. Assim funcionam as coisas. O fato objetivo é que se está falando mais de saúde mental do que nunca. Em 2008, com a crise econômica, vimos um incremento aproximado de 20% em patologias como transtornos de diversos tipos ou crise de ansiedade. Neste caso, vem acompanhada de pessoas que se infectaram, gente que morre, incerteza, problemas sociais, et cetera, portanto, esperamos um aumento maior do que o daquela época.
Estamos sofrendo isso em determinados segmentos da população. Na Espanha, em toda a Europa, os leitos de hospitalização de adolescentes em unidades psiquiátricas estão lotados. Não há leitos livres e temos lista de espera.
Começou pelos adolescentes, provavelmente o grupo mais vulnerável – provavelmente pelo confinamento, mas esperamos que continue por outros de especial vulnerabilidade: com um transtorno mental de base, familiares de primeiro grau de pacientes falecidos por Covid, doentes de Covid grave ou com sequelas neuro-psiquiátricas importantes, fundamentalmente os que estiveram internados no CTI, e profissionais da saúde que estiveram expostos em primeira fila e que apresentam vários quadros de ansiedade, depressão ou transtornos por estresse pós-traumático.
O que afeta também a saúde mental de crianças e adolescentes?
Sobretudo, a interpretação. A privação de liberdade afetou todos os cidadãos, mas na adolescência, por um lado, as coisas são vividas pior do que em outras etapas da vida. Tendem a magnificar o que acontece e a projetar que as coisas não têm solução, que vão durar para sempre e não têm a capacidade de temporalizar e prever que voltarão ao terreno conhecido… Pesou também, durante o confinamento, sua enorme exposição às redes sociais e a conteúdos tóxicos que têm que ver com a imagem de seu corpo, por exemplo. Isto provocou uma enorme quantidade de transtornos de comportamento alimentar, quadros depressivos ou de ideias relacionadas com o suicídio. É importante que aprendamos as lições e a próxima vez que se tomem decisões que têm que ver com a saúde pública, na hora de poder avaliar os riscos e os benefícios de qualquer medida, saibamos que confinar pessoas jovens tem um preço alto que não conhecíamos até agora.
Além do importante papel dos psiquiatras, socialmente seria bom reforçar os serviços de psicologia e qual deveria ser seu papel na prevenção de quadros como a ansiedade, depressão e, em última instância, do suicídio?
Situações como as vividas afetam a todos. Às empresas, às famílias… Põem em evidência as carências. Na Espanha temos uma taxa significativamente inferior à média europeia em psiquiatras e psicólogos clínicos, e chega a 400% no caso dos enfermeiros. É fundamental ter boas equipes de atenção de saúde mental que integrem diferentes profissionais (psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e trabalhadores sociais). Para muitas patologias a primeira indicação, sobretudo na população juvenil, é uma boa intervenção psico-terapêutica que identifique os casos mais graves, crônicos e aqueles em que é necessário usar psico-fármacos.
A primeira indicação de um transtorno depressivo leve em um adolescente é uma psicoterapia cognitiva-comportamental que supõe uma hora de atenção por semana, durante 16 a 18 semanas. Isso o sistema público espanhol não pode dar. Não há psicólogos suficientes para dar aquilo que sabemos que é o melhor, porque tem maior eficácia e um maior benefício, e um menor custo e menores efeitos secundários. Produz pena e frustração que o sistema não esteja preparado para responder ao que sabemos que seria ideal.
A quais sinais devemos estar especialmente vigilantes?
Não devemos “psiquiatrizar” a natureza humana, nem experiências vitais como as que estamos vivendo. Eu, como profissional, me preocupo se alguém não o faz diante do que está acontecendo. É normal ter uma noite ruim pela incerteza, ansiedade ou que nos venham à cabeça pensamentos sobre o futuro que não sejam otimistas. É esperado que estejamos tristes se morre um familiar. O sinal de alarme que deve fazer com que uma pessoa diga: cuidado, está ficando fora de controle, é o momento em que toda essa sintomatologia esperada afeta sua vida em aspectos importantes como não poder trabalhar, não desfrutar de sua família ou não ter vida social. Essas são linhas vermelhas nas que o funcionamento de uma pessoa, do ponto de vista clínico, se viu alterado. Aí é quando estamos diante do começo ou temos um transtorno mental.
Se ouvimos um colega, amigo ou familiar falar de suicídio, da ação ou de que não vale a pena viver, é fundamental que não banalizemos o assunto e nem o interpretemos de forma jocosa. Do total das pessoas que se suicidam, 50% delas tinha falado previamente com alguém. Quando alguém fala disto é preciso tentar que receba a ajuda que necessita e acuda aos serviços de saúde mental.