INOVAÇÃO| 02.11.2022
Videogames terapêuticos: E se o seu médico receitar um videogame?
Os EUA acabou de aprovar um videogame que será receitado sob prescrição médica para o tratamento em crianças do transtorno do déficit de atenção. Terapias com jogos digitais que melhoram a vida de pacientes com dor intensa, depressão, Alzheimer, autismo, dislexia ou problemas mentais crescem a uma velocidade extraordinária. As exigências de certificação de seus benefícios também estão aumentando. Savia, a plataforma digital de serviços de saúde da MAPFRE, oferece videoconsultas de psicologia em função do tipo de transtorno e inclui a possibilidade de segmentação por idade para crianças e adolescentes.
Em julho de 2016, milhões de pessoas baixaram um videogame de realidade aumentada e foram para as ruas e parques ao redor do mundo para procurar e capturar uns bichinhos simpáticos. Usando a câmera do telefone como arma de caça, os jogadores interagiam, se reuniam em diferentes locais e compartilharam informações sobre as 151 espécies originais que foram liberadas pelos criadores de Pokémon Go. Isto foi notícia em todos os noticiários.
Poucos dias após o lançamento, a história de um menino nova-iorquino de 6 anos se tornou viral. Ralph Koppelmon, com transtorno do espectro autista, passava a maior parte do tempo em casa sem falar com ninguém. Quando o app da Nintendo virou moda, a criança saiu à rua para capturar pokémons e começou a interagir com outras pessoas “como nunca antes tinha acontecido”, explicou sua mãe no Facebook.
Naquele verão, as redes sociais se encheram de publicações de pais e especialistas que comentavam os benefícios do videogame para este tipo de transtornos. Havia até mesmo um rumor de que o desenhador de Pokémon, o japonês Satoshi Tajiri, também possuía uma neurodiversidade, síndrome de Asperger, que teria auxiliado no desenvolvimento do jogo. Isto foi negado.
Apenas um ano depois, em 2017, uma pequena empresa de medicina digital de América do Norte, Akili Interactive Labs, levou muito a sério a realização de um videogame que servisse como terapia contra o déficit de atenção, um transtorno com prevalência na população infantil entre 5% e 7%, segundo dados de um estudo observacional que contou com a participação de mais de 150 milhões de pessoas de 14 países.
E recentemente, em julho de 2022, EndeavorRX, desenhado por Akili Interactive, foi aprovado pela FDA dos EUA, a Administração de Alimentos e Medicamentos, para sua utilização no tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). De fato, este videogame também recebeu a certificação do Conformité Européenne para a comercialização na União Europeia. EndeavorRX é o primeiro videogame que estará disponível sob prescrição médica e servirá como ferramenta complementar aos tratamentos farmacológicos e psicoterapêuticos.
Em todos estes anos, Akili Interactive testou o videogame em mais de 600 crianças, com a participação de neurocientistas e desenvolvedores e com o objetivo principal de estimular e melhorar certas áreas do cérebro vinculadas com a atenção. O jogo para dispositivos móveis é o típico de corridas e seu protagonista é um alienígena que viaja em uma nave espacial coletando objetos. O programa começa com uma terapia de três meses, em que a criança dedica 25 minutos diários a brincar, tempo suficiente para que ela possa ignorar as distrações e se concentrar em seu desempenho.
Na Espanha, a plataforma digital de serviços de saúde, Savia, decidiu expandir a cobertura com o oferecimento de um cuidado por transtornos, com 24 áreas de especialização que abrangem estresse, ansiedade ou depressão, transtornos da alimentação, TDA/TDAH, timidez e fobias sociais, entre outros.
Segundo o CEO de Savia, Pedro Díaz Yuste: “Este serviço chegou em um momento chave e coloca à disposição dos usuários não apenas um tratamento, mas acompanhamento no cuidado da saúde emocional”. “Ele é lançado com a convicção de que será uma melhoria substancial para nossos usuários, uma vez que a especialidade da psicologia é particularmente adequada para ser desenvolvida por meio de videoconsulta”.
Estudo inovador contra a dor da quimioterapia em crianças
Quanto ao potencial terapêutico dos videogames, cada vez mais estudos estão sendo publicados e também há mais pesquisadores preocupados por conhecer os benefícios, e não apenas para distúrbios neurológicos. Depressão, dislexia, Alzheimer, saúde mental e dor física são outros pontos de trabalho dos especialistas.
O doutor Francisco Reinoso-Barbero, chefe da Unidade da Dor Infantil La Paz (Madri), é responsável por um estudo inovador que demonstrou que o uso de videogames alivia a dor e facilita a cura de crianças doentes com câncer. A dor mais frequente está associada aos tratamentos de quimioterapia. “A mucosite é um tipo de dor em que todas as mucosas ficam bloqueadas e doem. Ela ataca as células da mucosa e é como se o paciente engolisse água sanitária e apresentasse o esôfago inflamado e queimado”, explica o especialista médico de maneira gráfica para a MAPFRE, para poder entender o dano e a angústia ocasionados pela quimioterapia nas crianças.
“Vimos que uma das coisas que nos diz se uma criança está bem ou não é sua capacidade de brincar, de se divertir e de estar à vontade. Se ela não sente dor, pode brincar. Fizemos o contrário, o que aconteceria se tentássemos com que ela jogasse. Escolhemos um modelo com crianças que precisam de doses muito altas de morfina para suportar essa dor. O resultado foi que quando colocamos videogames, elas precisaram de menos morfina e falaram que a dor foi menor”, comenta o Dr. Reinoso-Barbero.
Para descobrir como a realidade virtual influi na mitigação da mucosite, este especialista contou com a colaboração da Fundación Juegaterapia, que obteve todos os materiais e distribuiu os dispositivos no hospital. “Duas horas diárias de videogame, assegura o médico, seria o tempo ideal para este efeito analgésico. Assim são evitadas posturas indesejadas e impedirá o vício no jogo”.
Os videogames utilizados são adaptados psicologicamente, não são violentos nem cruéis. “Eles estão relacionados com animais, viagens ou eventos históricos. O paciente mais jovem que participou no estudo tinha 6 anos e o mais velho 16. O mais importante é que, quando você brinca, sua doença evolui favoravelmente”.
Reinoso-Barbero é otimista sobre que os videogames podem abrir seu potencial terapêutico a outro tipo de dores. “Hoje existem muitas doenças que causam dores intensas às crianças”. O chefe da Unidade da Dor lembra como um menino costumava ficar realmente doente só de pensar em quimioterapia. “No dia em que o deixamos com o videogame e ele começou a brincar, quando entrei para tomar seus sinais vitais e medir todos os parâmetros, perguntei-lhe a que horas tinha recebido a quimioterapia e sua resposta foi: ‘Não, hoje não a recebi’. Foi incrível, pois ele não foi consciente de que tinha sido submetido a quimioterapia, alheio à medicação porque estava totalmente envolvido no videogame. Essa completa desconexão nos deu a sensação de que a terapia estava funcionando”, relembra Reinoso-Barbero.
Jogos mentais em busca de certificação médica
O treinamento cognitivo através de jogos digitais é outra das vertentes que apostam pela gamificação como ferramenta para contar com uma melhor saúde mental. O Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, em suas siglas em inglês), criou The Guardians, um projeto desenhado para ajudar as pessoas a melhorar suas vidas utilizando o poder dos jogos digitais. O objetivo dos especialistas do MIT é criar um conjunto de videogames que ofereçam recompensas, mas não para assistir a anúncios publicitários ou pagar dinheiro, mas para realizar atividades saudáveis que melhorem a saúde mental.
Nesta linha, a CogniFit é uma empresa de saúde digital criada pelo israelita Shlomo Breznitz, que está na vanguarda do que é conhecido como fitness cerebral. De acordo com seu site, mais de 4 milhões de pessoas utilizam seus jogos mentais disponíveis em 18 idiomas. A CogniFit, cujo CEO é o espanhol Carlos Rodríguez, procura agora se expandir no mercado das doenças cerebrais e obter a certificação para vários de seus produtos no tratamento da depressão, insônia ou epilepsia.
Jogos certificados para evitar falsas expectativas
Nos EUA, país que tomou a dianteira nestes aplicativos (braingames), a FDA exige certificações individualizadas quando uma empresa pretende comercializar um produto com potencial terapêutico determinado. “A obrigação de certificar um jogo terapêutico tem como objetivo não criar falsas expectativas, analisar em detalhe o que faz um videogame e como o faz para evitar efeitos nocivos, porque o que está claro é que todos os seres humanos aprendem através dos jogos”, comenta Jordi Albó Canals, especialista em robótica social, responsável pela empresa Lighthouse e uma das mentes mais prodigiosas na aplicação de soluções tecnológicas que ajudam o bem-estar do ser humano. “As empresas podem dizer que um jogo possui benefícios e que melhora as capacidades do indivíduo, mas não podem simplesmente falar, ela tem que demonstrá-lo e certificá-lo. Finalmente, eles têm que passar pelos mesmos processos que uma droga”, assegura.
Albó admite que conceitos como serious games (produtos a meio caminho entre o software educacional e os videogames comerciais), playful learning (aprendizagem lúdica) ou social and emotional learning (aprendizagem social e emocional na educação) estão na moda porque podem contribuir para o bem-estar das pessoas.
O principal problema detectado por Albó é que muitas vezes prevalece o objetivo do jogo e não o da terapia. “O perigo da gamificação é que o objetivo da terapia seja o objetivo do jogo e não o objetivo terapêutico. Esse vício que às vezes é provocado pelos videogames, que pode ser positivo, abrange um risco como o que fazer terapia com jogos seja como acalmar com opiáceos. Se toda a terapia estiver baseada em conseguir pontos e passar telas a qualquer custo, o paciente apenas focará nisso. Vamos imaginar que você joga futebol não para fazer esporte, mas apenas para vencer a partida e que chuta o jogo inteiro porque isso lhe permitirá ganhar. Para mim, esse é um dos riscos”.
Avanços na dislexia e nas demências
Outra das possibilidades é a utilização de videogames para elevar a fluidez de leitura em crianças com dislexia, um transtorno específico da aprendizagem que produz deterioração na compreensão, na leitura e no reconhecimento das palavras. Embora não seja fácil calcular a população afetada pela dislexia, a ONG Dislexia and Literacy International afirma que cerca de 10% da população (mais de 700 milhões de pessoas) sofre com ela.
A revista Nature publicou em 2017 os resultados de um estudo realizado por cientistas do Basque Center on Cognition, Brain and Language (BCBL), centro internacional de pesquisa com sede em San Sebastián, e do Laboratório de Psicologia da Université Grenoble Alpes (França), que demonstrou que os videogames de ação e os livros possuem processos visuais estreitamente relacionados, demonstrando que certos jogos digitais “podem melhorar significativamente a atenção visual e a velocidade de leitura em crianças disléxicas”. Os especialistas escolheram para seu ensaio videogames de ação, porque obrigam o jogador a permanecer sempre alerta e reagir com rapidez.
Isto mesmo acontece com transtornos cognitivos, como a demência ou Alzheimer, sem cura hoje em dia. e com tratamentos paliativos que não alcançam a eficácia desejada. As linhas de pesquisa com videogames, especialmente com os denominados serious games, estariam concentradas na busca de ferramentas de terapia não farmacológica nos produtos de entretenimentos que possam evitar e retardar o avanço destas doenças. Entre as últimas descobertas merecem destaque os estudos do National Institute on Aging (departamento do Instituto Nacional de Saúde dos EUA) que descobriu como os videogames (concretamente Super Mario e Angry Birds) melhoram a memória de pessoas com idades entre 60 e 80 anos.
Jogos virtuais contra a depressão e a solidão
E se os jogos virtuais fossem uma válvula de escape para as pessoas que se sentem sozinhas ou deprimidas? E se, além disso, eles fossem uma ferramenta válida para melhorar a saúde mental? Quatro pesquisadores da Universidade Vitória de Wellington (Nova Zelândia) concluíram em seu estudo, Os efeitos dos videogames casuais sobre a ansiedade, a depressão, o estresse e o baixo estado de ânimo, que este tipo de entretenimento digital (videogames simples e fáceis de usar que são jogados em curtos períodos de tempo) têm efeitos terapêuticos sobre a saúde mental.
Jogos de defesa, como Plantas vs Zombies, quebra-cabeças, como Frozen Bubble, Bejeweled 2, Peggle, Bubble Shootter ou Bookworm Adventures, de tipo arcade, como Sushi Cat 2, de reflexão, como Pessoal Zen, apresentaram resultados muito interessantes vinculados à redução nos níveis de ansiedade, alívio de tensões, recuperação afetiva, redução do estresse pré-natal em grávidas ou nervosismo nos estudos.
Em uma realidade onde não há soluções milagrosas, parece haver ferramentas terapêuticas para atenuar os sintomas de alguns transtornos mentais, entre elas os videogames. Jogos clássicos como Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões em português), baseado na mitologia do escritor J. R. R. Tolkien, também são utilizados em terapias psicológicas grupais para trabalhar a criatividade, a comunicação e a colaboração. Este videogame online permite que o papel de mestre de cerimônias possa ser desempenhado pelo terapeuta, que os mundos imaginários projetem situações reais dos pacientes, que a criatividade possa fluir por ser um jogo, que o comportamento do paciente possa ser modificado no jogo através de reforços e aprendizagens do personagem, e que aumentem as habilidades sociais e a autoestima mediante a aprendizagem de estratégias de comunicação, como neste artigo reconhece o neuropsicólogo Javier Ramírez-Corzo.